1. Cultura 

Como combinar o amor daqueles que fabricamos com o nosso sangue, com a dramática obrigação de “educar” e corrigir, podar e, no extremo, punir – tudo isso que vem de fora, dos costumes, para a nossa intimidade?

Roberto DaMatta, ESPECIAL PARA O ESTADÃO

A alegria musical é, então, a da alma, convidada excepcionalmente a se reconhecer no corpo. 

Claude Lévi-Strauss 

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George Gershwin Foto: Reprodução

Cresci numa casa sem livros, mas com um piano. E mais que isso: com uma pianista que “tocava tudo” e era mãe e “dona da casa”. Uma “dona” ciente de que o mandão da “porta da rua” em diante era o marido. O pai que, preocupado com os seis filhos e a “carestia de vida”, não tocava nada. Estava sempre preocupado com sua pré-ocupação. Era austero e, pouco falando, errava pela mudez. Mas nos levava à praia, à piscina e ao cinema. Adorava os filmes de Tarzan e de guerra, então em moda. Quando via um filme excepcional, dizia: “esse é de encher a medida”.

Eu me arrependo de não ter falado – confesso ao leitor nesta coluna escrita com o coração – com ninguém o quanto eu os amava. 

O mundo nos obriga a disciplinar e a “dar exemplo” e isso torna as relações entre pais e filhos um elo insolúvel. Se perguntam demais, são insolentes ou intrusos. Se ficam afastados, viram indiferentes. Como combinar o amor daqueles que fabricamos com o nosso sangue, com a dramática obrigação de “educar” e corrigir, podar e, no extremo, punir – tudo isso que vem de fora, dos costumes, para a nossa intimidade? A preocupação com o “educar” é difícil e quase sempre reprime o encontro amoroso com os filhos.

A música do piano de mamãe fazia esse ligação de modo preciso e alegre. E, assim, ela ficou para sempre nos nossos corações. 

As melodias “entram” pelos ouvidos e fazem do escutar um ouvir ou do ouvir um escutar. Um ouvir, porém, cujo entendimento não requer nenhum esforço porque, dentro de cada um de nós, a música encontra um sentido imediato (de indiferença, repulsa ou de imenso prazer) sem nenhuma mediação. Em todas as linguagens, há uma diferença entre o som e o sentido – esse clássico enigma da comunicabilidade. A música, entretanto, como diz Lévi-Strauss, é uma linguagem nua: um código no qual som e sentido se confundem.

De fato, ao ouvir uma melodia, não cabe perguntar se ela é entendida ou não. Seu propósito é complicado (senão misterioso), justo porque ela pode ser instrumentalizada, e ajuda a despertar alguma emoção ou identidade (caso dos hinos nacionais e as músicas de amor ou de carnaval), mas a música não tem finalidade, exceto a de existir. É o belo em estado puro, pois nem material ela precisa ser para se materializar. Se o escultor usa mármore ou bronze e o pintor, tela e tinta, o músico usa o próprio som que passa em sucessão harmônica e, passando, fica na nossa memória musical, uma recordação, aliás, especial e a última que perdemos. 

A música é uma linguagem que dispensa tradutores e nos obriga a tomar parte dela pela passividade e, muitas vezes, pelo gesto ritmado. O que confunde numa língua estrangeira é descobrir o que o som exótico significa. Mas, na música, conforme aprendi com Lévi-Strauss, tem-se uma língua na qual som e sentido chegam juntos – são inseparáveis. 

Mamãe foi um prodígio ignorado pelo meio no qual nasceu e cresceu. Aos 5 anos, tocou uma música folclórica que fez com que sua professora deixasse de cobrar as aulas para a menina talentosa. Vivendo numa casa sem piano, a mãe viúva de mamãe pediu a um carpinteiro que fabricasse numa tábua as 88 teclas desenhando nela seus sustenidos e bemóis. Foi nesse “teclado” de mentira que mamãe descobriu a profunda lição de que, na vida como na arte, tudo é simbólico e até mesmo os sons existem somente na nossa mente e cultura. 

Todos os dias, a pianista deixava de ser dona de casa, mãe e esposa e, no final da tarde – um pouco antes do jantar –, ela dava um recital caseiro, fazendo o piano substituir as rotinas particulares da casa pela criação universal da música. De harmonias que nem sempre existiam no grupo.

Talvez, quem sabe, as músicas escolhidas de Ary Barroso, Eduardo Souto, Chopin, Liszt, Lamartine Babo, Pixinguinha, Jobim, Strauss, Franz Lehár, Gershwin, Jerome Kern, Cole Porter e Irving Berlin tivessem alguma intenção velada. Quem sabe faziam parte de um código secreto, familiar aos adultos, desenhado para aguentar este mundo. 

Mamãe tocava e, muitas vezes, cantava e explicitava a súbita beleza das letras. Na medida em que envelheceu, foi recitando cada vez mais as letras ao mesmo tempo em que mencionava os nomes das pessoas que gostavam de tal ou qual canção. Eu aprendi inglês com as músicas americanas tocadas por Lulita (era o seu nome). Ela adorava o refrão “I love you, and you love me”, tão rotineiro nessas músicas – hinos a uma reciprocidade banida da vida moderna…

Todo dia, eu ouço música. Todos os dias, a música traz no seu espírito a alma das pessoas que me fizeram humano e que estão nas harmonias que escuto no centro do meu ser. Cada melodia faz surgir uma alma que a música libertou da minha alma. Vejo os irmãos, os tios e o pai orgulhoso, mas ciumento, da mulher com aquele talento dividido pelo piano. Vejo muito as namoradas com as quais dividi um amor virginal. 

Pode haver coisa mais sublime do que viver o belo no bom piano daquela que lhe trouxe ao mundo? 

É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’Tudo o que sabemos sobre:músicaTarzanPixinguinhaEduardo SoutoFrederic ChopinCole Porter

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By valeon

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