Por
Bruna Frascolla


Manifestantes a favor da nova constituição, em Santigo, Chile, dia 1º de setembro de 2022| Foto: EFE/ Alberto Valdés

O Chile de hoje é um país incapaz de dizer sim a um projeto político. Era um país pobre antes do golpe de Pinochet; um país pobre daqueles que hoje servem para alimentar ONGs boazinhas do primeiro mundo. As crianças chilenas e as africanas eram objetos de caridade intercambiáveis. Décadas depois de Pinochet dar o golpe, jogar alguns comunistas de helicópteros e colocar uma porção de Chicago Boys na economia, o país ficou rico. E ainda virou destino chique para a classe média da região, que vai lá atrás de queijos e vinhos no friozinho. Havia tudo para se considerar uma história com final feliz, qual seja, o próprio final feliz.

Mas os tempos atuais têm uma moralidade peculiar: não basta um final feliz para ficarmos satisfeitos. Na moral atual, o que se deseja é um certificado de pureza, e esse certificado só pode ser obtido mediante uma avaliação total da História. Essa sociedade passou pela escravidão? Então o que temos hoje não pode ser bom. Essa sociedade atirou comunistas de helicópteros? Então o que ela tem hoje não pode ser bom.

Vivemos em tempos que se reputam o Fim da História. Os atuais viventes seguram um martelinho de juiz e usam seus dogmas morais particularíssimos para condenar ou louvar cada ato passado séculos ou milênios atrás. Então não importa que o Chile de hoje viva bem com uma Constituição mais ou menos herdada de Pinochet. O país não virou uma democracia mantendo a constituição igualzinha à da ditadura; há emendas. Aliás, vale destacar que o país conseguiu virar uma democracia depois de atirar comunistas de helicópteros. Foi por causa disso? Se construir uma democracia próspera fosse tão fácil, a África estaria bem hoje, já que não faltaram comunistas naquele continente para serem jogados de helicóptero.

Será que o Chile conseguiria ser uma democracia próspera caso não enfrentasse uma verdadeira guerra civil? Não sei, ninguém sabe. Contrafactual é uma seara da história onde dificilmente há consensos. Sempre haverá liberais e esquerdistas que digam que o Chile se tornou uma democracia próspera apesar da violência, ou no mínimo a despeito da violência.

Por outro lado, John Gray diz que uma falha dos hayekianos é não perceber que o liberalismo precisa de força do Estado para ser implementado. Trocando em miúdos, forças antimercado, tais como sindicatos e grupos de interesse, são constantes nas sociedades, e só com uma força central é possível debelá-los.

Seja como for, só militantes partidários ousariam negar que o trabalho dos Chicago Boys tem relação com a mudança econômica sofrida no Chile. Os Chicago Boys não atiraram ninguém de aviões, e o Chile estava numa situação tão pacífica que não havia clima para atirar de helicópteros quem quer que fosse. Assim, independentemente do contrafactual adotado, nos dias recentes era possível ficar com as coisas boas de Pinochet sem as coisas ruins.

Dizer não ao passado é fácil
Nunca se diz o que há de objetivamente mau na Constituição chilena; seu vício é de nascença. É bem o caso oposto ao do Brasil, onde a Constituição vigente surgiu debaixo de muito confete democrático e midiático, mas que consegue desagradar a todos em virtude de problemas intrínsecos ao texto. As pessoas dizem que ela é ruim por amarrar demais os orçamentos ou por ser particularista demais (trata do Colégio Pedro II, por exemplo), e não por algum problema na pessoa do Dr. Ulysses. Ao mundo, os chilenos não dão nenhuma explicação para o que tanto desagrada no texto constitucional que eles já remendaram à vontade. Tudo é uma questão de purismo moral.

Há uma praga no Ocidente que é a transformação da imprensa num partido progressista global. Se o povo elege um presidente contrário a ela, ela se julga legítima o suficiente para tratá-lo como um vilão. Disse há muito que “la démocracie c’est moi”; decretou que a democracia é ela própria. É provável que isso tenha raízes no pós-guerra e seja uma doença dos EUA exportada para o mundo. A imprensa determina em uníssono quem são os vilões, quem são os mocinhos, e nós achamos tudo muito bonito e democrático. Era assim até acontecerem duas coisas: as redes sociais emergirem como fonte alternativa de transmissão de informação e a imprensa se radicalizar. (Será que a radicalização da imprensa é fruto da perda de poder? Não dá para saber agora.)

Eis que a beautiful people resolveu fazer um daqueles quebra-quebras super-democráticos, que a própria beautiful people acha bonito e, por isso mesmo, ganha um nome que soa legal. Trata-se da “Primavera Chilena”, quando jovens black blocs cheios de consciência social foram às ruas pedir a substituição da “Constituição de Pinochet”, o fim da corrupção e das injustiças sociais, além da diminuição do preço dos transporte público em Santiago. Gente fina, elegante e sincera. Saldo de mortos: 34, segundo a historiografia oficial. Foi um mistureba de caras-pintadas com junho de 2013. Das nossas violentas “Jornadas de Junho”, porém, não saiu nenhum mártir.

Aquele traço do nosso país apontado e deplorado por comunistas é real e é bom: o Brasil é pouco propenso à violência política. Por mais que os intelectuais e a TV clamem por sangue, nosso povo é tranquilo e não vai pegar em armas por causa de abstrações.

Agora façamos uma continha. Segundo os cálculos nada imparciais da Comissão da Verdade, morreram por causa de política 434 pessoas entre 1964 e 1988. A “Primavera Chilena” durou cinco meses (de outubro de 2019 a março de 2020). Com essa taxa de mortalidade, se a Primavera Chilena durasse um ano, mataria 51. Para morrer a mesma quantidade de gente que supostamente morreu no Brasil em 24 anos, bastavam oito anos e meio de “Primavera Chilena”.

Em vez de sair explicando tudo por abstrações, seria necessário ter em mente que os povos variam. Os chilenos ativaram comunistas de avião porque eram violentos e estavam conflagrados. Com a desestabilização na Constituição do país, o Chile voltou a um estado de conflagração. Nele, a violência emerge — e se corpos voltarem a cair de helicópteros por causa de política, não será de surpreender.

Intolerância seletiva
Os políticos chilenos compensaram a barbárie com a convocação de um plebiscito para saber se deveria haver uma nova constituição.

Quando Pinochet saiu vitorioso, Allende foi o derrotado. Os chilenos politizados demonstram toda a intolerância do para o que quer que se refira a Pinochet; desejam fazer uma refundação do Chile para apagá-lo da história, purificar o país. Por esse capricho, estão dispostos a causar a morte de dezenas nuns poucos meses.

No entanto, isso se faz ao mesmo tempo em que Allende é alçado à condição de santo. Ora, Allende era um entusiasta das políticas eugenistas da Alemanha Nazista e tentou implementar Tribunais de Esterilização no Chile quando ainda era parlamentar. O próprio Partido Socialista do Chile nasceu com financiamento da Alemanha Nazista, como mostrou Victor Farías em ‘Salvador Allende: Antissemitismo e eutanásia’. Ele, aliás, encerra o livro acusando Bachelet de ter tentado dar seguimento ao projeto de Allende. Os socialistas seriam os mesmos.

Por aí vemos que só interessa revirar o passado para criticar o que deu certo. Se deu errado e era evidentemente monstruoso, não sofrerá escrutínio. É proibido revirar o passado e concluir que as coisas poderiam ter sido bem piores.

A facilidade do “não”
Por fim, um problema do Chile que me parece generalizado é o abandono da política nas mãos dos fanáticos. O cidadão vaidoso e respeitável só tem duas opções: ou bem ele defende um monte de absurdo da moda, ou bem ele dá de ombros e faz um ar blasé. Parece que votar é coisa de quem tem candidatos ideais, puros. Como só os fanáticos têm tais candidatos, só os fanáticos votam.

A barbárie convocou plebiscito, 50,95% dos eleitores votaram. Dos que votaram, 78% quiseram uma nova Constituição.

Nas eleições presidenciais, o mesmo espírito dominou o país: ou o candidato dos sonhos, ou o desdém pela política. Os fanáticos disseram “sim” para Boric, o resto foi blasé e disse não para a política.

Nesse ínterim, uma Constituição aloprada ficou pronta, e tudo o que resta ao Chile é dizer “não”. De “não” em “não”, vão esquentando a temperatura política. Os blasés lavam as mãos enquanto os fanáticos tocam fogo no circo.

Que fique a lição para o mundo. É preciso coragem moral para dizer “sim” às coisas imperfeitas que estão à nossa mão. São imperfeitas as Constituições, a História e os líderes. Tentemos sempre aprimorá-los, mas nunca descartá-los por inteiro, sob pena de sermos governados por fanáticos que se acham perfeitos.


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